Pintura: Ewelina Ladzinska
E um perdão tinha feita a vida eterna novamente. Eram
momentos tão ternos, que quase acreditaram na premissa platônica da completude.
Flor lembrava do começo sem pretensões, quando seu coração era casa assombrada,
fechada, de interior escuro. Mas ele veio, e limpou as teias de aranha, as
dores tacanhas, os brilhos mal luzidos. E fez cantar. Arranjou-se uma rotina
feliz. Era felicidade que inundava linhas de tempo alheias, em fotos, palavras,
argumentos. Perguntava-se, como em tão pouco tempo, tudo era tão intenso, exposto.
Perdoara, antes mesmo que o coração pedisse que ela
passasse, ali, às vistas de todas e todos, de um relacionamento sério para
solteira. Quis evitar que curtissem sua dor. Reflexionou e ninguém soube,
apenas os amigos e as amigas reais. Sem representações. Ou com elas. Sentia
ainda a traição, sempre reiterada, dia ou outro, mas a importância naquilo era
nenhuma. Estava feliz. E era tão feliz que podia continuar ali, sem mesmo
desejar tristeza.
O trabalho a sufocava. Ele também. Nunca imaginou que aquele
rapaz solto pudesse engolir rotinas, adaptar-se a ela, sentir-se metade sem a
sua atenção. Mas estava inseguro, pedia, pedia, pedia. Por mensagens, ligações,
voz abalada. E ele tinha o ciúme de um leão. Flor sempre acreditou que quem não
deve não teme. Se ele teme, então é porque devia, refletiu. E devia, mais
ainda. Estava certa.
Depois do amor - como sempre, ele a fazia plena – sentiu uma
tristeza percorrer-lhe. Pegou de súbito o celular do rapaz, enquanto ele
cantarolava no banho. Sentia aquela invasão, como se o estuprasse. Contudo,
sentiu mais ainda, que era preciso. Violentou-se também por fazê-lo, pois
prezava, imensamente, pela liberdade. Sabia que as imagens daquela maquininha
que alcançava com leves toques só tinham acesso por senha. Mas foi. E fez de um
jeito, que a segurança foi burlada, sua vida abalada, seu mundo ali se achatou.
Perdeu ar e perdeu terra. Embora em cama macia, flutuou.
Raivosa, terna, racional. Pensou, que escroto. Sentiu vontade de esfaqueá-lo,
cuspi-lo, quebrar aquele mesmo celular pelo qual ele falara com ela. Mas prostrou-se
ali, e viu, mais uma vez, um rosto sem graça, em baixa resolução. Viu mais do
que deveria para poupar seu sentimento. Gelada, sem vida, desacreditou no amor.
No seu, no dele, no amor. Mais uma vez? Por quê? Foram três minutos que tiraram
sua cor e trouxeram pensamentos simples. Era como se já estivesse preparada. Se
já soubesse. Lembrou que sentira mais cedo, como da outra vez.
Ele cantava no banheiro. Ela gritou.
- Quem é Jana?
- Jana? Trabalha comigo. Porque?
- Deixa de mentir. Eu tenho muito nojo de você. Muito.
Ele espantou-se com a frieza com que ela falou aquilo.
- O que foi? Você viu alguma mensagem?
- Não dá mais. Não dá. Eu vi as fotos. E a legenda.
- Foi só uma vez.
- E ter sido uma vez torna as coisas melhores? Acabou. Não
me procure mais. Nunca. Se veste. Vamos embora.
Ele calou-se e nem sequer tentou retrucar. Reparou que ela
estava calma, sem sal nos olhos. Estranhou. Saíram dali. Conversaram na praça,
como de costume. Ele disse que não a merecia. Ela concordou. Flor virou a
esquina. Deveria ter sido um adeus. Deveria. Ele chorou, como quando o pai
morreu. Os dois se encheram de porquês. Era para ter sido o fim. Era para ter
sido.
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