quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Iracema


Fitou o ovo. Fitou aquele círculo amarelo que não se estribuchava como o ao redor branquinho. Tinha em algum lugar um risquinho branco, que sambava com a quentura. Esperma de galo. Ficou pensando se pudesse ter sido vida. Mas era só um risquinho branco. Sentiu nojo. A barriga gritadeira não deixou que ela tivesse o luxo de jogar o ovo fora. Ali, um ovo frito a encarava.

Esqueceu uns pensamentos sórdidos na beirada do fogão e foi chamar a irmã. Pequena, belíssima. Catarro escorria-lhe pela face manchada de mundo. “Atentada, vem pra dentro senão eu meto a chibata em ti!”. E não sabia o porquê de fazer da criança sua raiva. Raiva da mãe que a batia. Raiva do pai que nunca a defendera. Sempre bêbado, lerdando em meio olhares. Raiva de terem raiva dela.

Era pequena e grande e vendia corações. Corações de côco, de brigadeiro, corações-morango, corações-baunilha. Tacava a mão na barriga com força, como quem quer expulsar. Foi que, um dia, ela conseguiu. Carregava bucho e balde pra todo canto, quando sentiu chão molhado de dor. Nem era a água de kiboa, era vida escorrendo. Envelheceu. Desde aquilo, trinta anos a consumiam. O tempo mentia-lhe 16, mas a pele murcha e o olhar cainte não enganavam. Perguntava-se, fitando ovos, como tinha tantos anos em tão poucos. Vexames.

Tinha um pé grande. Acordava de 5h. Amarrava o cabelo pixaim e ia embolar corações congelados, em papel cor de lâmina. Tal qual o seu. Detestava chocolate. Era bom que nos aperreios de fome, não iria comer as mercadorias. Seu ganha-feijão.

Ali vivia. Ali, num lugar chamado canseira. Carregava a irmã pelo braço a cotoveladas e maus olhares. Pequena, belíssima. Olho de bila, já sem catarro. E tinha dia que saia só. Foi quando conheceu ele, tão grande. Quis roçar naquela barba. Quis deitar no sem camisa. Quis. Tinha medo. Noivaram. Pois que o pai exigiu o passo à passo do mandamento. Importantíssimo, segundo ele. Já dividiam rede, mas o casamento estava marcado. Iam morar ali mesmo. Era só questão de papel.

Mas a menina era triste em sua felicidade plena. Amava. Tinha amor. Faltava-lhe algo. Um vaziozinho a roía por dentro. No coletivo, não compravam mais corações como antes. Desceu do ônibus meio cheio, meio vazio. Um solzão alumiou demais sua cara. Parecia o ovo quente que ela fitava. Amarelo. Raiozinho branco, vistou. Ariou-se. Não prestou atenção, veio um carro e a colheu.

Seu menino fez-lhe um samba. Chora até hoje, com seu vestido e um sapato. Deu um retrato por perdido. Pobre Iracema.

tá...
Essa não é a história de Iracema, mas podia ser. Ouve aí!


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