segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A partida / A tormenta







A partida

Já não mais via explodir estrelas nos olhos dele. Mas foi quando viu marasmo naquele meio-dia que sentiu algo dentro de si estremecer. Falou curto, até feio, como já tão bem a habituara. Sentiu como se comesse catchup c
om gengibre. Um gosto de culpa e incapacidade fechou e ardeu sua garganta.

-Não dá mais!

Ele soltou límpido. Calada, ela sentia-se morrer.

- Se você quer assim...

E juntando primeiro roupas, tão bem espalhadas por todo o quarto, ele se irritava.

- Você viu meu modem?
- Está no bolso da sua mochila.

Ela começou a juntar os cacarecos tecnológicos e efêmeros que tanto deram prazer e felicidade momentâneos ao ser amado. Seria ela só mais um, perguntou-se. Buscava oxigênio, tanto para evitar que aquela água toda se caísse, como para continuar existindo, respirando. Crescia os olhos. Sentou na cama. Investigava cada ação supranervosa daqueles dedos trêmulos que noites atrás passeavam por ela.

- Você viu aquele par de meias ver...?
- Tá na segunda gaveta, do lado esquerdo.

E perseguia com os seus, aqueles olhos que evitavam lhe fitar. Como era lindo aquele olhar. Como foi lindo quando, por uma força maior que brotou dentro dela, não mais teve medo e o encarou, enco
rajando-o. Na festa, no quarto, no altar.

Queria poder pedir ao menino travesso destino para deixar de lhe jogar pedras naquela frágil vidraça, que ainda chamava coração. Levantou a cabeça e gritou com o olhar. Queria mesmo gritar ali, jogar-se a seus pés, pedir que ficasse, que repensasse, que a amasse indefinidamente, que tivesse um filho com ela, que...

- Amor...

Aquele quase
amor pronunciado pelos lábios elásticos que ela amava a fez saltar de seus devaneios. Mas sabia que a chamava assim por hábito. Puro, estúpido e assassino hábito. Ele se refez do ato falho e perguntou outra pergunta qualquer que ela não escutou, porque descobriu que perdia os sentidos. Descobriu ali que era ele quem integrava os seus sentidos. O mirou:

- Oi?
- Achei!

Eu até cantaria pra ele se assim me pedisse, eu até passaria o dia fazendo compras se assim desejasse, e
u até pegava a cerveja na geladeira se... E logo um pedaço d’água partiu a dignidade que tão bem estava protegendo-a. Depois um soluço, seguido de outro e de um punhado deles, convulsivamente, escondia-os entre os dedos.

Ele a agar
rou imediatamente.

- Meu xuxu, eu não queria que fosse assim...
- Não estou pedindo nada a você. Só não posso evitar, só isso.
- Não chora, assim você me deixa triste.
- Você já está triste, só está se protegendo atrás dessa indiferença toda inquieta.
- Você sabe que eu...

Ela arrastou a mão pelo rosto molhado, enxugando-o parcialmente. Embora ainda sofresse, uma paz a fez vibrar um pouco.

- As chaves do carro estão na mesinha do lado do sofá. Depois a gente discute sobre as coisas pequenas, já que não temos crianças por quem chorar.
- Minha flor, como eu queria...
- Adeus
- Te ligo!

E ele terminou de juntar as mesmas coisas que eram dele, quando ele era dela. Rumou para a porta.

Ela ficou ali, sofrendo com a ida dele, parada, dormente, partida.










A tormenta

Sentia que a vida estava muito completa. Nada era emocionante naquela perfeição toda. Amava-a e sabia que tudo estava indo tão puramente bem que era sacal. Pôs em prática a decisão na hora mais quente do dia. Falou curto, até feio, como há alguns meses andava fazendo. Viu névoa nos olhos dela. Mas evitava a olhar.

-Não dá mais!

Ele soltou límpido. Calada, ela sentia-se morrer.

- Se você quer assim...

E juntando primeiro roupas, tão bem espalhadas por todo o quarto, ele se irritava.

- Você viu meu modem?
- Está no bolso da sua mochila.

Ele não podia acreditar como o amor da sua vida estava ali indiferente, juntando suas coisas mais caras e mais legais. Seus prazeres de horas, aos quais ela vivia o recriminando. E agora ela estava ali, catando-os, como num ritual. Mesmo olhando sorrateiramente para ela, enxergou nervosismo naquele corpo esguio, que parecia trêmulo. Aquele corpo que ele tanto amava, que lhe sorria impecavelmente. Como a adorava. Seu jeito, seu porte, sua inteligência.

- Você viu aquele par de meias ver...?
- Tá na segunda gaveta, do lado esquerdo.

Achava inacreditável como ela poderia ser tão organizada, tão metódica, tão sistemática. Ele arrastava-se pegando cada coisa, embora vez ou outra, a visse sentada, com aqueles olhos pequenos. Como os amava. Desde que naquela festa escura, eles se iluminaram à medida que eles se paqueravam. Até como o olhava antes de dormir, carinhosamente, pedinte, intimadora. Ou ainda quando esqueceu-se que era um, pra ser dois.

O desejo de ficar queimava-lhe o peito. Mas quem sabe aquilo não fosse o melhor para ambos. Não queria admitir pra si próprio, mas custava segurar o coração que pulava danado, feito garoto tinhoso querendo fugir. Acreditou loucamente que a separação seria o sopro de confetes de que precisavam. Lembrou do tempo em que esteve na marinha, e era como se um daqueles nós que apreendera estivesse agarrando as suas cordas vocais. Soltou:

- Amor...

Como pôde ter dito aquilo. Iria chamá-la pelo nome. E sem querer chamara-a de amor. Era tão dolorido chamá-la pelo nome. Não era só hábito, era um vício constituinte do amor que se agrega na linguagem da pessoa. Ferida inconsciente. No fundo, não estava mentindo. Tinha, desesperadamente, que perguntar qualquer besteira para disfarçar seu ato falho. Falou e ela pareceu não o escutar.

- Oi?
- Achei!

Ele viu que ela estava mesmo trêmula, notadamente. Porque a fazia sofrer assim, perguntou-se. Porque se fazia sofrer assim, perguntou-se. Lembrou dos tempos primeiros e dos seus planos. De como a amava pelo que era, pela beleza cheia, repleta de espertezas e aspirações, por sua vontade de salvar o mundo e por como tratava tão ternamente as pessoas. A quis exultante, a queria exultante. Caiu dos seus pensamentos quando ouviu um soluço da mulher que mais amava na vida. Correu para acalantá-la.

- Meu xuxu, eu não queria que fosse assim...
- Não estou pedindo nada a você. Só não posso evitar, só isso.
- Não chora, assim você me deixa triste.
- Você já está triste, só está se protegendo atrás dessa indiferença toda inquieta.
- Você sabe que eu...

Antes que ele tivesse coragem para juntar os pedaços de sua vida no chão ou enxugar o rosto molhado dela, ela mesma o fez. Mas viu o rosto dela se iluminar, preocupando-o.

- As chaves do carro estão na mesinha do lado do sofá. Depois a gente discute sobre as coisas pequenas, já que não temos crianças por quem chorar.
- Minha flor, como eu queria...
- Adeus
- Te ligo!

E ele terminou de juntar as mesmas coisas que eram dele, quando ele era dela. Rumou para a porta.

Foi só quando se viu de costas, que um pedaço de água arranhou desde o olho até o canto da boca. Pegou o carro e durante todo o caminho, a vida ficou cinza, embaçada, tormenta.


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