quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A lenda do poste fofoqueiro


Era alto e luminoso. Quieto, passava o dia naquela rua, vagabundeando parado. Era nas noites que se fazia em fulguras. Iluminava bêbados tépidos, casais delirantes, passantes esquivos. A postura sempre ereta e o ar de fria serenidade observavam barras apressadas de roupa. Já vira de tudo. Morte, vida, atropelamentos. De ares altivos, acendia-se a cada vez que, terminada a luz solar, a lua se apossava majestosa do céu sombrio. O diâmetro de sua luz não era de se jogar fora. Tinha melindres vez por outra. Ora era fraco seu brilho, ora queimava pupilas de gatinhos indecentes. E pensava, de dentro do comprido retângulo sólido que lhe era a forma, o quão pequena e bela pode ser a vida de um poste.

Era um poste sim. E tinha consciência de poste, de poste maduro que era. Cumpria seu papel social lá na rua. Se equilibrava em fios, junto com a meia dúzia de companheiros postes, que por lá iam passando, estáticos. Feito de pedra e ferro, sentimento que é bom tinha pouco. Acreditava por coração, a lâmpada redonda ali presa à ele. Um coração da noite. Um coração que abrilhantava a noite. Se orgulhava disso.

Posto que um dia, como sempre ali estava, veio um dálmata pleitear lugar junto aos pés que nunca tivera. Não tinha olhos que faiscassem de raiva, mas tinha uma energia que lhe corria nas veias. Fraca, desestimulada, a energia subiu-lhe e nem sequer foi capaz de bater funcionamento no coração instigado da noite do poste. Com o ao-redor demarcado pelo cão, que rebolava sobre a calçada quente, poste ficou nostálgico e passivo, como era determinante de sua personalidade de poste.

Ser inanimado não é fato de toda deserventia, pensou. Conheço todos, as histórias me apetecem. E sei que das lembranças de casos de outrem, minha memória se enrijece e fica por horas me divertindo em flauta, concluiu. Dia certo se pôs a trocar historinhas de gente com o poste amigo. Conduzia pilhérias, escárnios e altas revelações pelo fio de cobre que os unia. Não faziam em maledicência. Mas se riam daqueles seres tão menores, que de vez em quando transplantavam corações de postes.

Ainda sem ter nem língua, poste saltava suas impressões da gente para os colegas. Corpos davam-se às mãos, corpos se batiam, corpos se abraçavam, corpos corriam, andavam, se cruzavam, sem nem sequer se ver. Foi identificando diferenças, que depois banalizou. Mas compartilhava o que via. Até que um corpo eletricista ouviu uma conversa de poste e espalhou pela rua o quão fofoqueiros eram os postes, mais ainda aquele comum. Desde então, os moradores do por-ali tem o precavido hábito de se preservarem diante de postes. Eu que não acredito nessas coisas, me escoro neles, ainda que me assombre o medo de choques.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Eduardo fala das origens desse mundo


Incrível como esse grande autor, que até inspirou um dos Encontros (Erecom Theresina 2011) da Enecos, coloca em xeque algumas certezas desapercebidas pela maioria de nós. Por exemplo, sempre que há alguma referência às personagens da História, o artigo usado é o masculino, e a certeza é sempre a de que os feitos foram realizados pelos homens. Eduardo Galeano, em Espejos - Una historia casi Universal, aponta para a origem de algumas construções históricas das opressões vividas atualmente. O texto abaixo é só um dos exemplos trazidos na obra. Fica a dica de leitura!

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Fundação da beleza

Por Eduardo Galeano
Em Espejos – Una historia casi universal

Estão ali, pintadas nas paredes e nos tetos das cavernas.

Estas figuras, bisões, alces, ossos, cavalos, águias, mulheres, homens, não tem idade. Nasceram há milhares e milhares de anos, mas nascem de novo a cada vez que alguém as olha.

Como eles puderam, nossos remotos avós, pintar de tão delicada maneira? Como eles puderam, esses brutos que a mão limpa pelejava contra os bichos, criar figuras tão cheias de graça? Como eles puderam desenhar essas linhas voadoras que escapam da pedra e se vão pelo ar? Como eles puderam...?

Ou eram elas?



Fundación de la belleza

Por Eduardo Galeano
Em Espejos – Una historia casi universal

Están allí, pintadas en las paredes y en los techos de las cavernas.

Estas figuras, bisontes, alces, osos, caballos, águilas, mujeres, hombres, no tienen edad. Han nacido hace miles y miles de años, pero nacen de nuevo cada vez que alguien las mira.

¿Cómo pudieron ellos, nuestros remotos abuelos, pintar de tan delicada manera? ¿Cómo pudieron ellos, esos brutos que a mano limpia peleaban contra las bestias, crear figuras tan llenas de gracia? ¿Cómo pudieron ellos dibujar esas líneas volanderas que escapan de la roca y se van al aire? ¿Cómo pudieron ellos...?

¿O eran ellas?

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Maria e os revivals que me provoca


Minha gente, escutar Maria Bethânia faz qualquer cicatriz estourar. Tenho que parar com esse negócio de estourar cicatrizes. Tenho que parar com esses repeats eternos. Tenho que parar de mascar cada palavra da canção como se fosse feita pra mim. Ê vida de amor e desamor que maltrata dedos em dedilhar reclamações contra a vida.

Porque é que esse piano fica cutucando minha alma? Porque é que o “você” é um rosto tão antigo e presente? Ia ficar rica, se o povo comprasse dúvidas. Dúvidas e lembranças doídas. “Você que já não diz pra mim, as coisas que eu preciso ouvir...” é tão geral e tão meu, que dá uma abismada no peito.

Fico traçando linhas cronológicas mentais. Estudar o passado é desbravador e desencorajante. Passados recentes não ganharam nota de passado mesmo. Queria quebrar um ursinho de gesso lilás, mas tem dinheiro dentro. Nem eu entendo o que penso. É o piano dedilhado por alguém de um passado que não me pertenceu, embalando meu dedilhar na página negra.

Fingir não entender é sempre a melhor saída. Só não é a mais honesta. As verdades são interpretativas e, assim sendo, vão dar sempre margem para que possamos fugir delas. Jogar pensamentos dispersos que se emendam só na minha subjetividade é meio ato de egoísmo, eu acho. Preciso urgentemente de uma subjetividade honesta. Ao menos para cicatrizar a minha.

Vou montar uma banquinha de escambo. Há de haver empreendedorismo nisso. Troco verdades andantes por gestos bobos, espaços de tempo por luzes de agora, vantagens de vida por alegrias mutantes. Perfeitamente justo, já que nos negócios costumam lidar com coisas que não existem. Me eximo dos lucros.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Por que flores também nascem em destroços...


“Alguém escreve para tratar de responder às perguntas que lhe zumbem na cabeça - moscas tenazes que perturbam o sono; e o
que alguém escreve pode adquirir sentido coletivo quando, de alguma maneira, coincide com a necessidade social de resposta”.
Eduardo Galeano

Um amigo me ensinou que transformação social começa em você. E pra ensinar não é preciso só se vestir de discursos. Nem basta só levantar o debate. Seja em palavras, atos, alegrias. E você fica se pensando. E pensa. E reflete os atos cotidianos, as falas de cada hora, os olhares em pormenores.

Esse anseio, tão externo quanto interno, de ganas por mudar, de remediar problemas seculares, de reparar injustiças milenares, de acabar com discursos opressores vigentes e tão internalizados, até por quem se propõe a ir contra eles, é meio puro. É feito luz que brilha na alma humana. É feito flor, de pétalas macias, que fica a embelezar caminhos. É feito esses laços bons que te fazem encontrar pessoas com essa mesma inquietude. Pessoas que tanto e também carregam o tremor guevariano diante do injusto, das pequenas e grandes guerras, da dominação, da supressão dos sentimentos mais belos que a razão às vezes tapa. Comunhão, união, fraternidade, coletividade, respeito e cuidado pelo outro.

Repensar tradições, não engolir ideias prontas, varar por caminhos do outrem se faz necessário no mundo onde, como diria Drummond, “Caim não mata mais Abel, coloniza-o”. Me recuso a aceitar as verdades de cima, as pilhérias de quem é dono, as pancadas diárias de um destino inventado para dissimular e esconder conflitos e desigualdades sociais.

Não queria mais ver cansaços dissolvidos em fartas gargalhadas vazias, pra gerar esquecimento do fardo maior. Não me vejo dentro da prisão quadrada e brilhante, que devia ser janela de uma expressão popular. Da fala do eu, do nosso, do comum, sem critérios escusos de escolha de conteúdo. Não me ouço na caixa de som abafado, onde as falas comuns são minimizadas, as canções repetitivas, e a inteligência humana insultada, se aproveitando de um sistema que faz questão de dar poucas letras ao meu povo, e que lhe recusa até mesmo o sentar nos bancos arbitrários da instituição escola. Não me leio nessas páginas caras, que pro meu povo, faminto de tanto e sedento de alteração, enquadram uma segregação, posta pela educação qualificada, historicamente negada pelo Estado.

Pois que falam do otimismo da rede, que integra e democratiza... Mas mais uma vez, a falta de acesso às letras, aos conceitos e aos entendimentos formais privam meu povo de aprofundar o desenvolvimento de maneiras novas de expressão tão multiplicadas e que alcancem o mesmo meu povo, tanto e quanto a comunicação que não nos representa e não fala por nós. Embora, iniciativas brotem, frutíferas e consoladoras.

Chamam hegemonia, esse impor sobre o meu povo. Eu chamaria puro medo disfarçado. É mais fácil mesmo atomizar. Uma mente só jamais terá a mesma força que muitas mentes. O poder da mão com mão, de muitas mãos, é sempre quem muda o que está errado. Eu queria encher meus olhos desse tempo em que o círculo vai ser a organização social primeira, em que as cirandas não vão ser mais só alternativas.

E fica essa vontade, que, ainda bem, não é só minha, de abrir uns milhões de olhos, de gritar pruns milhões de ouvidos, pra fazer mover uns milhões de braços a clamar junto e mais bonito pelos ventos formosos da liberdade. Acho que vou continuar revendo sempre as ações, avaliando o meu certo, socializando luta, visões, contentamentos. Acho, não. Vou. Pois “eu sou muitas pessoas destroçadas” (Manoel de Barros), e quero reverter essa indignação em perspectiva...

domingo, 14 de agosto de 2011

O vaso vazio de uma flor sem forma


Antes, angustiado era o meu estar. Fazia penúrias de besteiras plenas. Mas por tempos, rumei por campos quentes, verdes, por lindos caminhos de gente tão bela no dentro e no fora. Recarreguei meu estoque de sorrisos. E assim, nem que quisesse poderia recorrer às tristezas banais. Mas a solidão, sempre regada de companhias intensas e lembrançosas, sempre volta a piscar na boca, vazia.

Meus pés latejariam pelos caminhos que andei, se neles não calçasse sandálias de vento, mais leves que as lembranças que ainda restam nas estamparias de minhas camisas. Meu tempo é um vai e volta, uma confusão. Não queria dar mais trabalho ao meu pensamento. Mas o coração, que é casto na sua indecência, me chama, me grita, me posta no muro, numa parada qualquer dessa estrada febril.

Queria por vezes ser toda ébria e enfrentar a vida sorrindo, feito o bobo que é mais feliz por que já descobriu que não precisa sofrer. Queria negar essa vontade tão humana de ficar sofrendo por algo que é tão passado, que me volta pruma esperançazinha, meio ridícula, meio indigna.

Minhas unhas não mais crescem de orgulho da mudança. Nem se colorem no pecado do querer. Meu liso é por outros motivos. Meus porquês já não se alteram. É desse vazio que me alimento. Numa hidroponia sem mesura. Nessa mania de me vestir de sentimento em flor e de flor em vaso frio, vou tomando formas que não esperei tomar.

Como pode a forma tomar o vazio? Ou será o vazio que engana a forma? Minhas respostas são cheias de vícios. Minhas perguntas não querem respostas. O lancinar do vestido na perna irrequieta preocupa a boca nervosa que rói a unha. Mordo e engulo meu desejo de mudar. Já não me apetecem os esmaltes nos dedos. Já não me arrancam delírios as flores no cabelo. Já consegui outros jardins que merecem cuidados.

Dedicar-me-ei não mais às orquídeas dos meus vestidos. Aliás, descobri nos canteiros por onde andei, seres livres, cuja fragilidade me assustou à princípio, mas que depois me mostraram a sua forte beleza. Borboletas me ensinaram a cantar. Estou a tomar lições de bater asas.

domingo, 7 de agosto de 2011

De deseo somos...


Por Eduardo Galeano
em Una Hisoria casi universal


La vida, sin nombre, sin memoria, estaba sola. Tenía manos, pero no tenía a quién tocar. Tenía boca, pero no tenía con quién hablar. La vida era una, y siendo una era ninguna.


Entonces el deseo disparó su arco. Y la flecha del deseo partió la vida al medio, y la vida fue dos.

Los dos se encontraron y se rieron. Les daba risa verse, y tocarse también.


segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Tinha biscuits cheios de vida


Tinha bonequinhas em cima de mesas. Tinha lembranças em cima da cama. Fitou olhos inertes, ficou com medo, mas não era o espelho. Era apenas a boneca de biscuit sentada na altura de sua mente. Tão indecisa ali, de cabelos roxos, arrupiados. As mãos estendidas pra frente, como quem pede e sabe que não vai receber. Tal qual, ela estava. Tal qual ela, era um ser perfeitamente moldado.

Tinha uma consciência condicionada. Tinha feridas na mente. Amava o vermelho e o cinza estava ali diante dela. Vergou pensamentos sobre o negror. Contaminou frases, torceu versículos, abraçou ideiazinhas medíocres. Pois que tinha um coração apertado por dúvidas. Eram seres cruéis. Apresentavam-lhe opções, cada qual com sua verdade, decepções, encantamentos. Sentiu inveja do ser inanimado, ali, expressando uma felicidade morna, sorriso de risco. Foi pintar telas eletrônicas com o dedo. Chamavam touch tal intervenção.


Descobriu. Tinha verdades desconhecidas dentro do umbigo. Tinha veredas finitas dentro do vento. Tinha vontades eternas, possivelmente, inalcançáveis. Não queria carinhos tristes com dois pontos e parêntese. Seu fazer era meio encanto cotidiano, como quem vê luz da janela do ônibus e festeja a alegria no vibrar do outro.
Depois se sentiu inerte como a bonequinha de biscuit. Mas ainda era vida, lembrou.

Fui prum Encontro, me encontrei de novo


E porque foram dias de estudos, conheceres, descansos agitados. Vi nossas ideias em muitas bocas. Vi muitas bocas entoando as mesmas palavras. Palavras de busca, de encontro, de fé. Uma fé diferente. No outro, num plano, no si para construir. Beleza. Vi beleza na indignidade. Valas não fizeram cair sonhos. Foram espaços cheios de braços, consciências, vontades. Vi círculos girando coletivo, me vesti de cirandas em noites de rio. Embriaguei-me com sorrisos de sambas, calypsos, carimbós. Misturas leves, quentes, brindadas por pés e corpos piauienses, cariocas, paraenses, capixabas, cearenses, paulistas... Vi caroés virarem repasse cultural.

Senti no efêmero o luminoso. Uns dias poucos pra grandes apertos. Quis subtrair pontuações quando conheci uns olhos negros, que me deixaram a lembrança do seu abraço num colar que tem seu cheiro.

Vi olhos aprendendo, olhos ensinando. Vi olhos que gritavam ansiosos pela transformação tão esperada. Utopia não é sonhar o impossível, li em alguns sorrisos. O Impossível é o concreto ali nos espaços, nas discussões, no repensar, no combater. Vi que formulações com pitadas de sonho são as mais belas formas de intervenção no real.

Fui ao Encontro. Encontrei vida, anseio, amigos, amor, causa, futuro. Pensei perspectivas, revi conceitos, provei deleites, vivi pedaços de Brasil, sonhei conjunto. Vi que essa sementinha, nascida no seio de qualquer opressão sofrida ou vista, que brota e floreia esperança, não é individual e isolada.

Ir ás ruas, provar do brado, compartilhar a voz do outro no mesmo tom, dá força à alma pra seguir na luta. Vi que deixar marcas na parede alheia é deixar o grito de que há algo errado. Ainda corre o risco de perceberem há tempo. Meu povo tem braços fortes moldados pela opressão. Por isso amo tanto as flores deixadas no caminho. Por isso não me canso tanto na luta deixada no caminho. Passos com flores em Encontros fazem encontrar lindeza na força. Fazem a gente se encontrar no caminho. Encontrar-se faz bem pra alma.

Enecom Pará 2011 – “Quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem...” (Rosa Luxemburgo). Foi lindo, agora partimos para a construção do Cobrecos Fortaleza 2012. Já escolhemos as flores. Vão ser girassóis.