segunda-feira, 11 de abril de 2011

Se afogar


Porque era um pedaço de tapioca enrolado num saquinho de sabonete Alma de Flores. Todo o gosto fora aliterado. Todo cheiro agora era lembrança não sentida. E véus turquesas embalavam momentos sem tom, música de silêncios , vertentes, estalidos. Afrouxou uma echarpe que sufocava menos do que sua consciência perturbada.

E foi pra chuva, e veio o sol, e virou pó ali mesmo. Encontrei o amor quando vi meu coração gritando em teus olhos, pensou. E ele estava lá. Não podia desviar. Saiu do prédio com o guarda-chuva e a garganta secos. Queria virar arco-íris ali. Queria que ele sumisse. Da rua, de dentro dela. Um fogo gelatinoso invadiu-lhe as veias, a medida que apertava os passos e o peito contra a pasta. Não queria virar e ver que em seu encalço estava um amor vestido com sua blusa preferida.


Um nome piscou em seus ouvidos. Era o seu. E aquela voz que já batera na porta da orelha, que já se tornara banal e rotina, agora fazia-se fumaça nos chuviscos que começavam a cair. Outra vez, aquele som de cordas vocais, que no começo eram melodia. Aquele grave que quase conseguia exprimir a maciez emborrachada dos lábios dele. Teria que enfrentar. Virou.


- O-iii!, gaguejou. - Desculpa, não tinha te visto... quer dizer, te ouvido... enfim, você quer falar comigo? Ainda conseguiu falar, antes dele começar.


- Olha... eu... quer dizer, você... Você tá com umas coisas minhas desde aquela época, sabe? Não tinha te pedido antes, pra não incomodar... Mas tipo... Agora eu tô precisando, é...


E reinou aquele silêncio burguês, de quem para uma mentira no meio pra se reavaliar. Ela conseguiu puxar pro pulmão cansado um ar que ia passando naquele momento infeliz.


- Sabe, é que eu tô com um pouco de pressa, Matias. Tenho dentista às 15h e fora isso...


Ele interrompeu.


- Mas você não vai passar em casa pra almoçar?


E como se todo o dito fosse a compilação de únicas forças que lhe restavam, deixou-se cair numa elevação da calçada dura, que mais parecia um banco.


– Bom, eu vou, mas é bem rápido e...

– Eu posso te acompanhar... Aliás, posso te levar lá.

– Eu acho melhor não!


E o frio não conseguiu evitar que o rosto redondo da moça se esquentasse. Era a bochecha vermelha menos vermelha que ele amava. Ele arriscou-se a tocá-la. O castigo veio em jatos d’água. Como ali tudo já tava rubro - fosse a face da pequena, o amor querendo pular ou a camisa do rapaz -, um bruto de carro vermelho ergueu uma poça em cima do casal.


Palavrões esquecidos. Ela nunca perdera aquele jeito lindo de xingar o que fosse. A menina teve de aceitar a proposta. O carro era o mesmo. As mesmas músicas, o mesmo breu à luz do dia. No caminho ele elencou as peças esquecidas. Pequenas bobagens, das quais certamente não tinha necessidade. Chegando, pediu a ele que esperasse.Desceria em meia com as tais besteiras. Não obedecer era uma de suas maiores virtudes. Subiu. A porta aberta, a sala arrumada, ela mudara. Os pingos caiam no banheiro. Foi ao guarda-roupas, arrancou cabides, vestidos, lembranças. Espalhou tudo na cama, juntou e arremessou pela janela.


Cada peça de roupa caia, como se ela chovesse pra ele. Deslumbrou-se. Quedas multicolores, pedaços de pano que serpenteavam contra o vento. Uma a uma, até que não sobrasse nada. Somente o perfume dela na rua. Quando saiu do banho, em choque com o que via, correu para contra ele em um ataque furioso.


Imóvel, sentado na cama, olhava aquele corpo esguio se debater de fúria, atacar seu rosto, lhe bater no peito. Quem sabe o coração saltasse pra fora. Agarrou-a. A toalha desabou. Ela também. Agora era sua. Minúscula, indefesa em seus braços. Era o que sempre quis. É afinal o que todo homem quer.


Desde que sua pequena libertara-se buscando o novo, ele queria quebrar seu sucesso, rasgar sua capacidade, pra que ela fosse só dele.


Ambos caíram numa convulsão de lágrimas. E poderiam ter misturado-se em pedaços de carne ali mesmo. Ele poderia ter mordido sua raiva. Ela poderia ter lambido sua estupidez. Mas não. Cresceram. Afagaram um ao outro como quem sente sede. Cuspiram todo o amor empurrado pra uma dispensa vazia e empoeirada. Gastaram recursos inválidos. Tornaram-se parte de um não. Gritaram vergonhas alegres. E esqueceram-se das bobagens. Ela sentiu um fim e descansou.


Enrolados, no lençol choroso, penalizaram-se. Confissões aturdidas, verdades bem ditas, perdões mal pedidos. E o homem tomou forma espiral. Enrolou-se como o cacho da cabeça da amada, num colo quente, com sorriso de ateu. E chorou, mergulhou e emergiu, tão cansado e cansado e cansado de ter possuído e não ser o dono.


Ela o segurou firme como quem não deixa que o outro caia. E beijou o seu sal. Exigiu um respeito carinhoso, mais justiça e massagens nos pés. E se pressionou contra ele. Eram ali camadas. Eram uma coberta misturada e aflita. Houve outro beijo e cada um adormeceu com suas certezas. Ela precisava de novas roupas.

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