sábado, 23 de abril de 2011

Flores não mofam. Ou mofam?


A menina Flor resolveu brincar de mulherzinha e ajeitou a tela do PC de frente pra sua cama de colcha lilás. Postou-se a pintar as unhas e fez florzinhas nelas. Esmiuçou-se em besteiras que há tempos não fazia. Detestava esses adornozinhos que as mulheres retêm nas extremidades do corpo. Arrumou e lixou as unhas assistindo P.S. Eu te amo. Era lindo e cheio de ressalvas. E ele não tinha ligado, lembrou.


A mãe fizera um delicioso sanduíche de pão amanteigado com galeto desfiado dentro. Ela sempre fazia essas coisas perfeitinhas e trazia no seu quarto, com o prato e o grande guardanapo deixando tudo mais bonitinho. A mãe nem lembrava que antes de ela ter ido, com o pai e o irmão ver a encenação da Paixão de Cristo, discutiram rapidamente sobre essa hipocrisia toda da religião.


Flor desejou do fundo da alma ter tido vontade de ir ver. Quando a mãe chegara, foi ao quarto e perguntou: - Adivinha quem foi Jesus? E lá fui ela divagar... Passaram-se três segundos e a mãe interrompeu dizendo que era o pai do filho da vizinha, ex-amiga da prima. Flor completou dizendo que ela já tava grávida de novo. A mãe já sabia e arrematou que o casal ia se casar. O Jesus daquele bairro de periferia ia casar com a mãe de seu segundo filho. 17 anos e o segundo filho. Deixou de pensar em todas aquelas coisas reais que apeteciam o seu ao redor e vagueou nas ideias do filmeco.


E porque se libertara assistindo um draminha norte-americano de romance. O achara interessante. Não só porque fazia referência a idiotice estadosunidense em algumas falas. Não só pelas cenas engraçadinhas de procura do homem ideal, onde a personagem elencava as prioridades clichês de que necessitava. Mas porque a fez refletir um bocadinho.


Certo, também perdera um amor forte e tal. 9 a 2, sem comparação, ela sabia. Até passara pela mente de Flor que se o dito cujo tivesse morrido teria sido melhor. Todavia, no fundo, foi melhor como foi. Tudo é melhor do jeito que é pra ser. Mas a gente só aprende depois, lembrou. Queria não precisar sentir. Queria ficar assim sem chorar com os filmes. Queria comprar frieza e se divertir sem amar. E ele não tinha ligado, lembrou. Flor não sabia o que queria. Se soubesse, não estaria satisfeita. Não estava satisfeita. E tacou-se ali em cima de um computador que nem terminara de pagar. A mesma máquina que suportara o peso dela nesses dias de feriado prolongado.


Estava meio paranóica. Não sabia como apagar a luzinha verde no canto de teclado, que já estava irritando-a. Essa solidão acompanhada já estava irritando-a. Sempre estava assim. E o pior, não conseguia dizer que amava as pessoas que amava. O que seria isso meu Deus?, refletiu. Precisava escrever pra exorcizar.


Queria não ser culpada disso. Seus esmaltes estavam acabando. Antes fossem só eles os derradeiros. Processos, vertigens, pensamentos. A luz verde continuava ali. Imóvel. Seria preciso desligar tudo para apagá-la? Acabrunhou-se. Flor tinha uma flor amarela de E.V.A em cima da mesinha. Tinha flores amarelas na alma. Pintara florzinhas nas unhas da mão esquerda. Mas essas eram vermelhas. Seria isso um sinal? Achava que não. Recebeu uma mensagem de Feliz Páscoa. Resolveu sair da cadeira de plástico que tão bem acomodara suas reflexões. O pai dissera que se não saísse dali, mofaria. Flores não mofam. Ou mofam? Foi beber água e regar-se pra tentar lavar a alma das florzinhas amarelas. Enfim ele ligou.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Minha gestalt alterada por costumes bethanianos


Fico pensando se amor é só um mesmo. Bomba boom que destrói mundo e só deixa o pó do encantamento. Fico pensando se a gente sempre acha que cada vez é a certa, e que não vai mais passar. E se essa passa, ficamos achando que virá outra, mais intensa, mais obviamente profunda. Ou pior. A vez passada se incrusta nas carnes da alma, e ai xuxu, não há nova vez que remova. Percebi de soslaio, que a vez se entrelaça mesmo ás veias do peito, quando a dor serve de linha. Aí o negócio é duro. A cicatriz tatua verões e invernos.

Alivia-se com tentativas, novas vezes pausadas, alegrias passageiras. Tudo regado a festinhas vazias e choros posteriores.
Fico com medo de minha vez ter passado, mesmo agora tendo em vista novas possibilidades de tentar vez. Vez é uma forma de ver. Ter vontade de escrever sobre. Rezar felicidade pra ele, ainda que você não tenha religião. Engolir orgulhos, a cada vez que lembra que ainda vive em função daqueles dias. Costumes bethânianos. Estourar-se de raiva de saber que é a lembrança dele que te embala o sono todas as noites. Desistir e voltar a desistir. Passar tempos sem ver pra cristalizar a dor.

E quando avista, entorna sobre si interpretações que te façam fotossíntese até a próxima vez que ele lhe regue com o olhar.
Então é chegada a hora de esquecer tudo e aceitar o que se tem. Pelo menos até... Enfim, é melhor suprimir. Fico com minha amiga Beauvoir, que me diz que “é tão fatigante detestar-se alguém que se ama!”. Fato.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Diálogo com Drummond


E por não esquecer de conselhos lidos é que me debruço nesse pecado. “Não grites, não suspires, não te mates: escreve”, me disse Drummond numa tarde quente e úmida, téte-á-téte, no meu computador. Em momentos de crise, a ordem parece ser a necessidade que impulsiona. “... alongai meu sentimento”, continuou-me a falar, em outro poema.

Pois teríamos um caso se contemporâneos fôssemos. Certamente, um caso de cartas. Mas ainda posso o amar através de seus versos. “O que eu escrevi não conta. O que desejei é tudo”. E me expressa em letras de quase um século. Previa futuros, versões, sentimentos.


Posto que meu primeiro namorado foi mineiro, não vou me estender em coincidências. “Retomai minhas palavras, meus bens, minha inquietação”. Posso tentar, lhe coloquei. E devo acrescentar que entendi a mensagem. Que a palavra não é fim, e que não morre em si mesma. “Cantai esse verso puro”, anunciou ele para que pudéssemos propalar não sua obra, mas as letras, o argumentar, o sentir em cada ponto, vírgula, cisma ou preposição.


Aos oito anos, sem que ele tomasse conhecimento, me enchi de amores por esse Carlos. Descobri a rosa que perfura o asfalto e também perfurou o meu tédio infantil. Comecei a catar pelos livros um tear de enredos daquele homem cujo sobrenome impressionava uma criança pelos dois emes.


Por tempos esqueci do prazer que me proporcionava antes de deitar. Me diverti com outros, também modernistas como ele. Sabino, Clarice, Scliar, Bandeira, Cecília, Raquel... Promiscuidade literária. Me voltei ao Carlos pela flor. A Rosa do Povo. E descobri num verso seu a pouco menos de um ano, verdades absolutas engendradas, decompus. “Para beber é preciso amar”.


“Muitas palavras nem precisam ser ditas”, me condenou outro dia. É que de fato ainda não alcancei um tempo literário satisfatório, bagagem subjetiva em plenitude e relevo amoroso etílico suficiente. Só sei que ainda me pego a pensar e me achar nas suas linhas_momentos. Relendo, acrescentando, redundando, perdendo, escalando. Tusso agora poeira de guardados. Antes agora do que nunca.

sábado, 16 de abril de 2011

Coração roto


















à M. S.

Estava quase ali. Num canto de rua, artéria, baldio. Esperava em frios espasmos, consolo. Fora antes esfaqueado por mãos tão doces, gestos ardis, sentimentos tão verdadeiros. As feridas ardiam em prantos gelatinosos, quase semeadores de um restauro. E ia passando naquela rotina estéril. Chagas haviam adormecido, quando por vez, uma luz pareceu fazer brilhar, quase curar, aquela pobre forma. Uma luz cheia de nomes. Esperança, recomeço, amor, que fosse. Plantaram-se sorrisos na tristeza da lama.


Aquela massa vibrante, dotou-se de vida outra vez, diante da morte que sofrera, e alegre, pôde respirar felicidade. Um novo amor, perspectivas, o que tinha buscado. Durou pouco. Novas convulsões assolaram o corpo pulsante inerte. Voltou a cair-se na penumbra. E aquelas feridas semi-curadas, magoaram-se em ardências mais profundas. Era reavivamento de passados inconsolados. Era de novo um coração pisado, maltrapilho, mendigo. Iria fechar-se em si mesmo dali em diante. Iria aguardar por novas aflições naquela viela de peito. Um peito de mulher aflita. Desilusão.


Situação repetida nos corações femininos, desenganos são puros. Eu já passei, tu já passastes, nós passaremos. Fato. De todo um coração que já se doeu demais, dedico essas palavras não ditas às minhas amigas que moram nesse mesmo coração reformado, reconstruído. E que em cada tempo seu, viram minar seus próprios corações. Caírem, iluminarem-se, adormecerem, palpitarem novamente, refazerem-se.


Há uma especificamente, a quem desejo um tempo mais rápido, reconfortos mais fortes, alegrias mais vastas, oferto meu apoio indescritível. Os enganos são fases amiga minha. Certos homens querem sempre se pôr acima. Sonegam carinho, horas, momentos. Só há que se contar com a fluência do mar da vida. Com essas ondinhas que sabem enjoar e reconfortar ao mesmo tempo as vistas da gente. A certeza é um pedaço de nada. As verdades são moldadas, impositivas. Mas nossos corações, apesar de já rotos, saberão reconhecer, à força das cicatrizes, os sentimentos brilhantes que estão por vir. Estão por vir alegrias. Pra mim, pra ti, pra nós todas. Eu sinto.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Consolo na praia


por_carlos_drummond_de_andrade


Vamos, não chores...

A infância está perdida.

A mocidade esta perdida.

Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.

O segundo amor passou.

O terceiro amor passou.

Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.

Não tentaste qualquer viagem.

Não possuis casa, navio, terra.

Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,

em voz mansa, te golpearam.

Nunca, nunca cicatrizam.

Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.

A sombra do mundo errado

murmuraste um protesto tímido.

Mas virão outros.

Tudo somado, devias

precipitar-te, de vez, nas águas.

Estás nu na areia, no vento...

Dorme, meu filho.


(extraído do livro A Rosa do Povo)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Se afogar


Porque era um pedaço de tapioca enrolado num saquinho de sabonete Alma de Flores. Todo o gosto fora aliterado. Todo cheiro agora era lembrança não sentida. E véus turquesas embalavam momentos sem tom, música de silêncios , vertentes, estalidos. Afrouxou uma echarpe que sufocava menos do que sua consciência perturbada.

E foi pra chuva, e veio o sol, e virou pó ali mesmo. Encontrei o amor quando vi meu coração gritando em teus olhos, pensou. E ele estava lá. Não podia desviar. Saiu do prédio com o guarda-chuva e a garganta secos. Queria virar arco-íris ali. Queria que ele sumisse. Da rua, de dentro dela. Um fogo gelatinoso invadiu-lhe as veias, a medida que apertava os passos e o peito contra a pasta. Não queria virar e ver que em seu encalço estava um amor vestido com sua blusa preferida.


Um nome piscou em seus ouvidos. Era o seu. E aquela voz que já batera na porta da orelha, que já se tornara banal e rotina, agora fazia-se fumaça nos chuviscos que começavam a cair. Outra vez, aquele som de cordas vocais, que no começo eram melodia. Aquele grave que quase conseguia exprimir a maciez emborrachada dos lábios dele. Teria que enfrentar. Virou.


- O-iii!, gaguejou. - Desculpa, não tinha te visto... quer dizer, te ouvido... enfim, você quer falar comigo? Ainda conseguiu falar, antes dele começar.


- Olha... eu... quer dizer, você... Você tá com umas coisas minhas desde aquela época, sabe? Não tinha te pedido antes, pra não incomodar... Mas tipo... Agora eu tô precisando, é...


E reinou aquele silêncio burguês, de quem para uma mentira no meio pra se reavaliar. Ela conseguiu puxar pro pulmão cansado um ar que ia passando naquele momento infeliz.


- Sabe, é que eu tô com um pouco de pressa, Matias. Tenho dentista às 15h e fora isso...


Ele interrompeu.


- Mas você não vai passar em casa pra almoçar?


E como se todo o dito fosse a compilação de únicas forças que lhe restavam, deixou-se cair numa elevação da calçada dura, que mais parecia um banco.


– Bom, eu vou, mas é bem rápido e...

– Eu posso te acompanhar... Aliás, posso te levar lá.

– Eu acho melhor não!


E o frio não conseguiu evitar que o rosto redondo da moça se esquentasse. Era a bochecha vermelha menos vermelha que ele amava. Ele arriscou-se a tocá-la. O castigo veio em jatos d’água. Como ali tudo já tava rubro - fosse a face da pequena, o amor querendo pular ou a camisa do rapaz -, um bruto de carro vermelho ergueu uma poça em cima do casal.


Palavrões esquecidos. Ela nunca perdera aquele jeito lindo de xingar o que fosse. A menina teve de aceitar a proposta. O carro era o mesmo. As mesmas músicas, o mesmo breu à luz do dia. No caminho ele elencou as peças esquecidas. Pequenas bobagens, das quais certamente não tinha necessidade. Chegando, pediu a ele que esperasse.Desceria em meia com as tais besteiras. Não obedecer era uma de suas maiores virtudes. Subiu. A porta aberta, a sala arrumada, ela mudara. Os pingos caiam no banheiro. Foi ao guarda-roupas, arrancou cabides, vestidos, lembranças. Espalhou tudo na cama, juntou e arremessou pela janela.


Cada peça de roupa caia, como se ela chovesse pra ele. Deslumbrou-se. Quedas multicolores, pedaços de pano que serpenteavam contra o vento. Uma a uma, até que não sobrasse nada. Somente o perfume dela na rua. Quando saiu do banho, em choque com o que via, correu para contra ele em um ataque furioso.


Imóvel, sentado na cama, olhava aquele corpo esguio se debater de fúria, atacar seu rosto, lhe bater no peito. Quem sabe o coração saltasse pra fora. Agarrou-a. A toalha desabou. Ela também. Agora era sua. Minúscula, indefesa em seus braços. Era o que sempre quis. É afinal o que todo homem quer.


Desde que sua pequena libertara-se buscando o novo, ele queria quebrar seu sucesso, rasgar sua capacidade, pra que ela fosse só dele.


Ambos caíram numa convulsão de lágrimas. E poderiam ter misturado-se em pedaços de carne ali mesmo. Ele poderia ter mordido sua raiva. Ela poderia ter lambido sua estupidez. Mas não. Cresceram. Afagaram um ao outro como quem sente sede. Cuspiram todo o amor empurrado pra uma dispensa vazia e empoeirada. Gastaram recursos inválidos. Tornaram-se parte de um não. Gritaram vergonhas alegres. E esqueceram-se das bobagens. Ela sentiu um fim e descansou.


Enrolados, no lençol choroso, penalizaram-se. Confissões aturdidas, verdades bem ditas, perdões mal pedidos. E o homem tomou forma espiral. Enrolou-se como o cacho da cabeça da amada, num colo quente, com sorriso de ateu. E chorou, mergulhou e emergiu, tão cansado e cansado e cansado de ter possuído e não ser o dono.


Ela o segurou firme como quem não deixa que o outro caia. E beijou o seu sal. Exigiu um respeito carinhoso, mais justiça e massagens nos pés. E se pressionou contra ele. Eram ali camadas. Eram uma coberta misturada e aflita. Houve outro beijo e cada um adormeceu com suas certezas. Ela precisava de novas roupas.

domingo, 10 de abril de 2011

Meu estar eternamente musicado


Na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença, na riqueza e na pobreza, etc etc etc. As antíteses mais clichês que celebram a união, talvez sejam boas ilustradoras do que tenho pra falar. Desde que nasci pra esse viver desregrado, me amancebei com a música. Temos uma relação promíscua e fiel. É na intensidade dos versos que afundo meus pensamentos. É na levada dos tons que flutuo cada sentir. Dor, raiva, euforia, ócio, nervosismo, cansaço, paixão, vertigens.

Ok, beijos. Essa é a hora de rasgar a folha e dizer, medo, que texto droga. Só deu vontade de montar uma listinha que contivesse, minimamente, meus sentimentos bobos e cantados. E como toda mulher é sentimento, e leia-se aí amor, separei com muito pesar, um bocadinho de vida em instantes-representações musicados. Escolhi canções, vivências em letras rimadas. Penetrações na voz tocável de cada artista. Muitas se perderam pelo caminho. Mas todas embalaram choros, sonos, prazeres, escritas, passados, esperanças, lembranças, fins, recomeços, flores, arrumações, momentos. Não estão por ordem de importância, pois mensurar afetividade é tarefa impossível.

Algumas já escutei tanto, que decorei, enjoei, esqueci, retornei, aprendi. Ficava às vezes abismada, como uma letra podia dizer tanto pra mim, sem nem me conhecer. Como interpretações, velhas ou novas, podiam emocionar agoras. Como alguns versos podiam ter sido vividos ou escritos por mim. Sacrifiquei as favoritas de luta, pelo número que estabeleci, e pela intimidade das outras. Justifico assim meu post individualista e meloso. Mas é de micros que o macro se constitui.

Segue então uma subjetividade cantada por outras vozes. Por que como a letra, mais uma vez bethaniana, vício, diz:“se não fosse a canção, quantas vezes a vida, seria pesada demais pra batida do coração...”.



sexta-feira, 8 de abril de 2011

Verdades tão repetidas


Gosto da minha classe social. Acho que se não andasse pelas bandas por que passo todo dia, não veria dores tão doces, vidas tão sensíveis, verdades tão repetidas. Tem toda aquela gente diferente e igual que passa e vai e vem todo dia, numa chuva miscigenada de olhares. Uns perdidos, outros atrasados. Outros ainda pedindo pra se cruzarem em felicidade. Sempre há destino certo. Não se acha mais ninguém sem rumo, perdido sem querer ou intencionalmente.

Têm aqueles que quebram rotinas de passantes e passageiros. Ou de fato, já são a própria rotina viva do transporte coletivo. Jovens, crianças, mães, velhinhos. Suplicam auxílio, remédios, trocados, oportunidades, consciências. Há quem venda, há quem peça, há quem pregue.

Num desses dias corridos, em que se anda devagar com medo de parar de vez, foi que vi. Um par de olhinhos sorriam e quase esbarram em mim. Nas mãos, a caixinha de chicletes. O rostinho cansado de quem trabalha como se a vida já fosse responsabilidade, gargalhava e corria. A camisa esfarrapada vestia o corpinho franzino que balanceava, como quem dança, na brincadeira no meio do serviço. Segui a direção do sorriso e lá estava o outro minúsculo vendedor. Deviam ter uns oito anos de idade. Eram dez da noite, e os dois ali se desviando da labuta, e relembrando por alguns minutos que ainda são criança.

Era felicidade em cima daquelas perninhas finas. Era felicidade nas gaitadas que eles davam. Era um brincar puro e inocente. Houve quem notasse, houve quem não. E eles foram pulando de parada em parada, naquele terminal abatido, fatigado. Senti meus olhos querendo se alagar. Segurei. Meu ônibus já vinha. Os pequenos já tinham ido. E lá fui eu pra casa. E lá fui eu buscar assento. E lá fui eu vaguear por proposições da vida dos dois. Comprar uns chicletes da próxima vez não seria o suficiente. Há uma caixa repleta deles. Há um terminal repleto deles. Chorei incapacidade em casa.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Círculos, curvas, retas


Achei um pedaço de texto de um passado que já se foi. E nem lembrava do não-querer que eu já possuía. Se eu lembrasse, talvez, teria sofrido menos, quando veio o rompimento, que agora já é poeira. Nem sei se o publiquei, e pior, estou com preguiça de procurar. Mais preguiça ainda, de criar algo novo. O cansaço não deixa. Andei pensando que devo ser mais real. Mais lúcida e menos metafórica. Mas a metáfora já faz parte do meu eu. Me sinto difícil por ser formada de figuras de linguagens.


Gosto de escrever como falo. Gosto de escrever como queria pensar. Queria escrever como gosto. Só fico aqui empurrando letras pruma tela de feixes de luz. Acho que estou recuperando uma luz que nunca tive nessa vida. Gosto de retas, curvas e círculos.


Mais ainda do círculo, princípio da vida. Até o que não é bola, roda. E me afundo em pensamentos anelares nessa minha cabeça redonda. E o vento bate em mim. Vem do movimento da hélice do ventilador. O botão da minha camisa caiu. Abriu casas e possibilidades. E meu coração anda sem forma. Meu cacho espiral não incomoda. Minha gestalt reconstitui. E eu dobro nas curvas do caminho. Reza a lenda que há achados por elas.


Sou curva. E toda curva. Uma semi-escoliose assola minha coluna. Meu início é melindroso. Uma inicial, um nome. Acho que a letra foi só o dedo delicado que passou na areia brincando rápido. Deu nisso. Curva. S. De resto, sou mais reta, do que lombar. Não há problemas, nunca gostei de excessos. Pretensão minha ficar aqui tentando traçar anatomia de letra. O l é reta. Também está no eu.


O bom das retas é poder quebrá-las. Desviar sempre dá prazer. O previsível é constante. A surpresa é eufórica. A surpresa quebra o constante. O constante quebrado é eufórico. Tudo é bom e ruim. As coisas só são como são pelo que não é. Eu queria ser todas as coisas. Mas logo me cansaria. Gosto de guardar euforia. Vou seguir na reta até tomar ganas de quebrar, sentir, não ser, cansar, guardar, dobrar na curva.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Me viro hipérbole


Tenho um ano mais que duas décadas. E às vezes me espanto com o que já vivi em números, veias, janelas de ônibus. Não me refiro a quantidades. Já prefiro afundar. Embora bem lá no fundo eu flutue. Minha dispersão é a vertigem-auxílio no enfrentamento do real. Gosto de hiperbolizar. Mas minimizo quando é preciso. Faço do sofrer grande coisa. Descasco alegrias em fundos de poço, pra não explodir em gotículas. Me dizem que sou setenta por cento água. Me seco nas noites. E eu nem tomo água direito.

A chuva é triste. A alegria é multicolor. A gota é multicolor e é da chuva. A gota é triste e alegre. A tristeza é alegre. Divido pensamentos com a chuva. Ela embaça o vidro. Ela o limpa. A rua fica cheia de verrugas transparentes, que se desprendem e escorrem acariciando o vidro sujo. A rua passa, a gota desce, e eu parada. Tenho uma ida. E vivo indo. Passando por tudo. Olhando meio embaçado.

Mas na chuva vi a beleza da vida. Ela deixa a rua bonita. E a gota, é criancinha, coletiva, adorada. Em terra de seca, adorada. Meio círculo, meio oval. A gota é flor. É indício, queda, alvorada. É recado, caminho, fim e princípio. Ela me anima. Estimula, porque só age junta, em grupo, comunidade fluvial na formação do todo: a chuva. A gota sozinha, é bela, mas melancólica. A gota sou eu me mirando nela. É o lado, meu irmão. O pra além, o aqui dentro.

Desejei me transportar pra dentro da gota. E viver ali, vendo tudo e sendo nada. Flutuando.

Flutuei e quase perco o ponto de descer. Dez metros, e um exército de gotinhas me encharcam. Corro e elas esmurram e afagam meu rosto. Me assustam metralhando um telhado de alumínio no qual me abrigo. Vejo milhares de suicídios de gotas. Quando as quedas cessam, lá vou eu me secar com trabalho. Mas tenho a alegria das gotas em mim agora.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Sem querer...


Sem querer, pisou na impossibilidade. Com aquele pé amarrado na sandália verde. Pediu desculpas e prosseguiu. Queria saber ser má. Talvez até já fosse. Mas queria um pecado completo. Descaracterizou-se ao sair de casa naquele sábado frio e inconstante sem sua flor amarela. Rebocou-se rapidamente, para ter tempo de pensar. Reparou que suas unhas diziam muito de como a vida andava. Todavia, isso deveria acontecer somente com ela, porque a amiga tinha unhas maravilhosas. Saiu pra comprar frescuras.


Na banquinha de jornal, era a única flor entre verdades e mentiras. Olhos-sorriso e um beleza vazia a encaravam trancafiados numa capa de revista. Era a mais nova milionária relâmpago do país. Passou por sua mente o que faria num desses reality shows. Desistiu da ideia. Seria muito oneroso forjar um personagem simplista e comovente, calçado de opressões que pudesse angariar votos alienados. O pensamento deu rabissaca, bateu na parede, e voltou em forma de vento. Injuriado, levantou sua saia. Sem muito que esconder, tratou de comportar sua barra. Seguiu a ladeira.


Na lesadeza de sair por ai flanando, nem era homem e podia fazer isso, olhou pra baixo e viu. Era um biloto preto, com a pontinha reluzente. Agarrou o negócio, e suas mãos curiosas identificaram um pendrive. Arrodeou com o olhar. Nada de dono do bicho. Vou conferir lá em casa se dá pra identificar , pensou. E lá se foi.


Era um bocado de planilhas. Args sucessivos. Imagine a monotonia de se lidar com esse horror de números. Mas aí lembrou do prazer que sentia quando resolvia equações na 4ª série. Desculpou o dono do hardware. Dono. Sim, porque, metodicamente, em uma das planilhas de nome “Em caso de perda deste, abra!”, o rapaz registrou seus dados sistematicamente. Lá se vai Flor usar seus sms’s do dia. Agora era esperar.


Num é que com dez minutos, o danado do telefone vibra loucamente ao som da Janis Joplin. “Agradeço sinceramente pelo contato. Qual sua disponibilidade de tempo para a devolução?”. Acabou de ler na mensagem de texto. Arre égua! Tinha que pensar. Retornou a cartinha eletrônica com data, horário e local. – Será que ele é bonito? Deve ser um nerdão. Até se animou.