segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A flor-luar: por repetições contraditórias de amores


Nas profundezas Flor mergulhou a buscar a flor. A linda flor azul. Seu perfume embriagante, delicadamente essencial, destruía as vontades do ser que a inalava.

***

No centro da floresta estava a rocha. Uma áurea magnífica a circundava. Ia aumentando a proximidade e o esplendor que dela emanavam. A magia a possuiu. Os olhos queimavam num brilho refrescante e tentador. A atração se tornou mais forte. Magnética. Magnetismo dourado-incolor. Puxou. Lutar contra era impossível. Haveria dúvida de resistência? O desejo era surpreendente, mais do que qualquer outro.

Ouviu sons. Quase cantos. Era como se penetrassem nela. Emocionavam. Não sentia o materialismo. Estava em um plano diferente. Se é que poderia rotular assim. As luzes prismáticas surgiam. Como sentiu saudades delas! Brincavam com Flor.

A três passos estava a rocha. Fria, amorfa, melancólica. E ao mesmo tempo com uma vitalidade fulgural, sentiu o amor. Emoção, prazer, êxtase, o perfume. Estava muito perto.

Ajoelhou-se. Retirou a pedra do sacro-lugar. E lá estava ela. Sob a pedra, a linda flor. Azul. Com seus vários lábios. Flor a pediu, mas não a podia ter. A ambicionou. Mas não era dela. Não era de ninguém. Não podia ser propriedade.

Cumpriiu sua tarefa. Hipnotizada pela estonteante beleza a colocou no chão. No sacro-lugar. Ela deitou junto a sua mãe e adormeceu. Flor a protegeu com a rocha. Estará lá para outra eternidade. Até que alguém a solicite. E como sempre, ela generosamente, irá ceder uma de suas pétalas-poder.

Não conseguiu crer. Tinha nas mãos a pétala. Pura. Macia como uma pétala. Vívida em sua palma. Temeu amassá-la.

Acariciou-a. Levantou-se e seguiu deixando o inebriante cenário pra trás. Mas não sem fotografá-lo uma última vez, com pupilas que pareciam mentirosas. Voltou à trilha. Guardou o tesouro recém-apanhado no estojo cor-de-marfim-sujo. Cuidadosamente fechou o encaixe de latão, trabalhado com diamante e grafite. Reluzia belo. Todo feito de palha, com espirros de sal e cacos de vidro combinados num sistemático mosaico, que em toda sua extensão promovia certo torpor pelas figuras que formava. Flores, bananas, relógios, baralhos, bocas entrelaçadas, pernas, abraços, fogo, espuma de um mar cristalino e lixo em montanhas de um paraíso-oásis. Tudo minuciosamente pequenino. Detalhes que encantavam pelo esforço empregado em sua construção.

Guardado o estojo na bolsa de tricô vermelho, Flor se sentou junto a um rio. Ele corria manso. Enternecia. Ela lhe arrancou um pedaço e molhou o rosto. Sentiu vontade de nadar por ele. Mas lembrou que não sabia nadar. Nunca aprendera. Foi pra água mesmo assim. Não iria se afogar. Não no rio. Naquele momento já estava se afogando na própria felicidade. A água tocava seu corpo com tensão corrente. Agradavelmente como em leves abraços.

Aproveitou o momento.

Saiu do rio molhada por seus afagos. Vestiu-se sem enxugar-se. Deitou-se no mato, junto a algumas flores. Delas sentiu o perfume que impregnava. As roupas secaram. Era como se sentisse cada gota evaporar. Lentamente. O aroma floral ainda a perturbava.

Adormeceu.

Sem noção de tempo, acordou. O sol se foi e junto com ele a água da roupa. Agora avistava a lua. Em um cordial sorriso. Tudo estava escuro. O que se podia enxergar era apenas aquilo que o luar deixava. Sentiu que tinha que partir. Apanhou a bolsa e se pôs a andar. O rio a acompanhou. Arrepios. Sentiu frio. A coruja voou sobre ela e conseguiu assustar. Lembrou de São Bernardo. De uma árvore a olhava. Profundamente. Como se perguntasse...

Voltou a andar, pois havia parado para contemplar a ave da noite. Bela e sombria. Poderia andar a noite inteira. Estava disposta. O silêncio era reflexivo. Fazia sentir. Sentia sua respiração. O cheiro do mato. O coração. O que estou fazendo aqui? Perguntou-se. Parou de pensar. Não teria medo. E realmente não estava com medo. Tinha seus motivos. Faltava pouco. Não poderia mais agüentar. Tinha de ser forte para ir até o fim.

Chegou a estrada. Sabia que não passaria nenhum carro-carona. Viu uma luz ao longe. Como queria que fosse a luz no fim do seu túnel. Depois de conseguir chegar até a flor e arrancar um de seus lábios, nada mais importaria. Era uma moto. Branca. O moço a viu e parou. Talvez atônito pela hora, indagou-a sobre isso. Flor não queria responder a sua pergunta. Nem a todas as outras. Naquele momento falar era desnecessário. Finalmente, ele tirou o capacete.

Medo. Quantos olhos viu ali? Eram dois, confirmou. Mas, multiplicadores, de um castanho vulcânico. Perceptíveis sob a luz negra. Era ele, mesmo sem saber. Era. Os fatos sucederam como tinham lhe informado. Encontrou. Como estava escrito. O destino não existia. Pensou.

Retirou o estojo. E dele a pétala com formato de gota. Ele a olhou pasmado. Tirou da jaqueta de couro sintético, o mesmo estojo e a mesma gota.

Juntas, nas mãos, unidas ali sob a lua, formavam a concepção que conheciam desde criança como coração. E ele era azul. Ainda mais azul pelo luar, que travesso transformava a cena em algo onírico. Ambos sabiam que a busca findara. Haviam encontrado. Haviam se encontrado. Dois olhares, um sentimento. Ele desceu da moto e a abraçou. Flor deixou-se abraçar. Ambos detinham certezas, iguais e diferentes.

Subiram e ele ligou o veículo. Seguiram estrada à frente. Alguns ruídos. A moto estancou. Quase sem palavras desde o primeiro olhar, entenderam. Era incrível como a compreensão não precisava de linguagens verbais. Universalidades. Como quando falava com as samambaias da avó e elas respondiam manipuladas pelas brisas-vontades.

A gasolina havia acabado. Intencionalmente ou não. Abandonaram o veículo. Mãos dadas. Segurança. Ele parou. Ela também. Olhares fixamente conectados. O beijo aconteceu na entrega. Era profundo e suave. Em abraços apertados. Lembrou do rio. Libertador. Se amavam, sabiam.

Aqueles beijos esgotaram suas poucas forças. Flor o puxou para fora da estrada. Entraram mato adentro. Ela recostou-se numa árvore. Ele também. Deitou no ombro dele. E adormeceu. Por instantes-horas. Ele sabia o que tinha que fazer. A mata selaria as bodas. Fizeram das árvores lar por três dias. Flor estava cada vez mais fraca. Apesar de ter extrema e compulsiva aversão a idéia, ele tinha a obrigação. Chegara a hora. A doença consumia Flor. E ela queria acabar com aquele sofrimento. Ele deveria fazer o que tinha de ser feito. Foi até a árvore que lhe indicaram. Cavou. Lá estava o punhal. Tudo passou por seus olhos, à medida que ia se aproximando dela. Mais do que a si, amava Flor. Virou o rosto, e plantou o objeto cortante no peito da pequena. Rasgou o bastante para retirar o coração azul. Trêmulo. Não podia mais. Sentia tanta dor e quase morreu ao experimentar o último suspiro da Flor que não mais o acompanharia. Um murmúrio inocente, tudo acabara. Ela ainda viu ali nos olhos dele o rio que corria. Um grito terrível. O bem para o mal. A crueldade libertadora. Como se arrependera. Mas era o que tinha de ser feito. Flor podia vê-lo. Melancólico. Coração na mão. Iria enterrar como previsto. No centro da Terra. E de lá iria nascer a flor. Azul. Todavia, para isso ele teria que regar o solo, com seu próprio sangue. Cortou os pulsos e regou o solo. Pintou o chão de terra com o líquido vermelho, esparramou. Sumiram as forças. No fim, deitou junto à arte que praticara-fizera e adormeceu. Para sempre... Pedra viraria.

Encontraram-se para a eternidade. Para eles ela passara a ser nada. Somente conceito dos Alinhar ao centro mortais, não-possuidores de si. E eles já não precisavam de conceitos.

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